domingo, 17 de fevereiro de 2013

A multifária figura de Bento XVI


A multifária figura de Bento XVI

a.j.chiavegato
Difícil por poucas palavras explicar Ratzinger e o Bento XVI. Admiro o teólogo de tantas obras, do papa, não, ou melhor, não o compreendo, apesar de tudo amo-o como amigo. Creio firmemente no Espírito de Deus que conduz a Igreja por caminhos escondidos e tortos. O Espírito de Deus sopra por toda parte. A liberdade de Deus é como a beleza, nunca se expõe, nunca determina, sugere. Intenções humanas, como as minhas, nem sempre batem com as de Deus. Por exemplo, lá por outubro de 1958, estava na praça de São Pedro a olhar a chaminé da Capela Sistina a anunciar o novo papa. Às tantas, saiu uma fumacinha anêmica, indecisa, nem preta, nem branca, um fiapinho branco de fósforo que se apagou. E nós a olhar para cima em expectativa. Abriu-se o balcão central da basílica, gente apareceu agitada em preparações, os sinos tocaram: habemus papam! De branco apareceu um gordo e baixo, o papa, desconhecido furando todas as pesquisas, a Megasena acumulou: João XXIII. Por nome, cara, porte e velho, não foi pequeno o susto: quem é esse cara?! – ninguém sabia. Lá longe um padre gritou: é meu bispo de Veneza, - nada ajudou. A meia hora já circulavam jornais de Roma estampando o novo papa em esdrúxula foto: carona de um gordo em montagem no corpo magro de Pio XII. Pela idade, analistas definiram: papa em transição. Dias depois, com humor ele disse: deixa comigo, até um papa de transição pode convocar um concílio. Do fundo de sua ignorância, não me consta que escrevera um livro antes de papa, com coragem convocou as mentes da Igreja, convidou leigos, protestantes e ortodoxos, enfiou-os todos em concílio, num vale-tudo de dizer a definir caminhos novos. João XXIII decretou o horário da primavera. Na Igreja acordou-se o verde, aves cantando, abelhas zumbindo a produzir mel, toda a terra entrou em cio a gerar o verão. João XXIII não teve tempo de ver o novo mundo que anunciou. Após ele, veio Paulo VI da troupe de Pio XII, acolhido sem surpresas. Bolsa de apostas de Londres não pagou nada. Esperava-se que continuaria a obra de João XXIII. Com efeito, Montini era gente fina, já temperado no por mundo melhor cujo lema era transformar o mundo de selvagem a humano e a divino (Pio XII). Não foi fácil segurar essa batata quente da Igreja pós-concílio. Coitado, virou um tímido papa-bombeiro a apagar incêndios que alastravam. Paulo VI não soube continuar a primavera estabelecida pelo antecessor. Após sua morte, cardeal Luciani que não sonhava, nem queria ser papa, foi eleito. Dizem que ficou branco, seguraram que ia desmaiar. Ao lado dele no consistório disse-lhe o cardeal Johannes Willebrands: coragem, Luciani, guenta aí! o Senhor dá o fardo, mas também a força para carregá-lo. João Paulo I não aguentou, quebrou-se, efêmero como um sorriso. Sei lá, por essas e por outras, em matéria de eventos humanos, os olhos misteriosos de Deus tudo veem, mas nada empurram. Aí veio João Paulo II o moço que veio de Cracóvia, Polônia, simpático, atleta, galã, duro forjado na opressão do comunismo. A esse mesmo tempo vivia Ratzinger na Alemanha no mesmo clima de opressão e medo do comunismo. Vivi em Fulda perto da Grenzzone , isto é, perto da fronteira dividindo as duas Alemanhas. Ao horizonte podia-se ver enfileirados mísseis face a face. A Alemanha sentava-se num barril de pólvora. Churchill, pouco fim da guerra recomendava: pior que o nazismo é o comunismo. Este é o inimigo verdadeiro que ganhou a guerra! É verdade, o terrível nazismo foi mais que briga de família. O comunismo é apátrida, um vírus a se infiltrar em nossas vidas, mal que contem no bojo uma verdade aprisionada: o homem oprimido que sonha de esperança. Emmanuel Mounier advertiu a condenar o comunismo: o risco é jogar a água suja juntamente com a criança. Acho que João Paulo II e Bento XVI brilharam, um, pela sua simpatia e crisma, o outro, pelo talento do teólogo. Ambos por medo do comunismo, jogaram na água suja a criança da Igreja banhando-se nas águas de João XXIII. Não sou hegeliano, muito menos marxista. Gosto da dialética, essência da vida humana, de resto, à imagem de Deus. À tese de João XXIII veio a antítese de João Paulo e Bento XVI, estamos a esperar uma síntese, ou melhor, um terceiro termo. Sei lá o que vai dar. Em loterias e em jogo de bicho sempre errei, só uma vez minha mãe pôs meu nome numa rifa da festa de São Sebastião, ganhei um cabrito que meu pai comeu. O novo papa? Chuto: Dom Odilo cardeal de São Paulo, ou outro quem sabe menos conhecido de João XXIII. Deus nunca chuto, de direita ou de esquerda. Não joga. Olha, enquanto céus chovem fecundando esperanças.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Coisas de velhos


a.j.chiavegato
Levantei-me às 7, às vezes me atraso, por exemplo, hoje 7 minutos. Banho, café, empanturrei-me de remédios, um acabou-se. Fui à farmácia comprar... – remédio? não, Bozó, um quilo de carne. Obrigado ao Mozar que me enviou um monte de vídeos do Chico Anízio. Chegando à pharmacia, perdi a viagem, o sistema da Farmácia Popular estava fora do ar. Perguntei pra moça: quando volta? Ela disse: eu? - Você, não, meu bem, o sistema? Caiu-lhe a ficha: ah, telefona pra saber? Pedi-lhe marcar o telefone, ao que disse: o meu? – Não, da farmácia. Saí, aproveite-me catar um folheto no chão jogando no lixo. Costumo pegar papéis, copo de plástico, tudo e jogo nas lixeiras, mania de velhos. Coco-de-cachorro não cato, que apanhe quem por ali se aliviou.
Ao passar por um bar, entrei para esquentar o frio, embora não me conhecem, pedi: o de costume – olhou o rapaz esperando. Fiz um gesto dando um tantinho: café com um pouco de leite. Dei-lhe um punhado de moedas, umas vinte. O rapaz conferiu, sobrou uma. Pode ficar - disse. – Quer balas? Peguei: levo pros netos.
Passei a uma livraria olhando a vitrine. Espanando livros estava meu amigo, acenei bom dia!. Acho que sempre saúdo as pessoas, tenho certeza acender uma luz, um sorriso em suas vidas. Virei-me a cumprimentar todo mundo, como Guimarães Rosa diria, falo bom dia até a cavalo, coisas de velho.
Voltando-me em função de gari, sabem, já vi velhos japoneses, voluntários catando nas ruas, tudo, até chicletes. Invejo este país. A mais de cinquenta anos, vivi em Alemanha, ninguém jogava palito de fósforo, nada, só as folhas das árvores com seu direito de cair nas ruas, em outonos, antes que chega a neve, linda quando cai, o silêncio branco cobrindo as coisas e a vida. Uma manhã, no centro de Fulda, após tomar um café no Kaffee Tille com uma senhora, ao sairmos ela amassou a notinha, não jogou, caiu-lhe da mão, antes de pegar, um guarda rápido apanhou: senhora, por favor, aqui, indicando a lixeira. Na família desta senhora em que morei, mãe de seis filhos, frequentemente saíamos em picnic por campos e matas. Comíamos sanduiches e frutas, papeis e cascas voltavam pra casa religiosamente. Exagero de limpeza? Acho que não. A natureza é uma extensão de nossa casa. Mais, um alargamento de nosso corpo, da terra viemos e para ela voltaremos a virar raízes de vida, espero. Respeitar a natureza, tudo, os animais, mesmo os ratos que detesto. Fernando Pessoa me adverte: tudo o que acontece, tem uma razão de ser. Também as plantas, acham que é pouco viver? Gisbert Cesbron (Ce que je crois, Ed. Seuil 1970 Paris) Sempre que passava pelo carro via uns arbustos ridiculamente podados: comovia-me às lágrimas. A esse ponto não chegarei, pegaria o dono, esculhambaria seus cabelos, se fosse careca, picharia de verde-amarelo-azul que rissem plantas, animais, até mesmo as pedras. Creio que a natureza não é uma coisa estranha que está aí, não é a outra, como Deus, que nela vivemos, nos movemos e vivemos. Nessa linha, creio que devemos reler Teillard de Chardin, Hymne de l´Univers (Ed. Seuil, 1961) e especialmente La messe sur le monde (1923). Faz tempo que li, tenho que tirar poeira, com cuidado.
Depois, fui ao banco, solicitando o cartão do banco, perdi, sei lá onde. Um rapaz me atendeu. Falei o número da conta, perguntando: percebeu que é um número, baixinho, quatro dígitos? É antigo, esta agência era pequena, todo mundo se conhecia, quando entrava, logo dizia: como vai Waldir? Perguntei ao funcionário: você conhece o Waldir? Antes que dissesse não, sacudindo a cabeça, cai-me no real: claro, você nem tinha nascido, mais de quarenta anos, acho que o Waldir morreu, que Deus o tenha. Coisas de velho...
Mal que termino, como vai minha saúde? Dá pro gasto, uma dor aqui, uma fisgada de lado, pernas cansadas, uma tontura... Minha mulher diz: Fofo, você tem que falar pro médico. Rebato: não carece, já sei o que ele vai falar. Pergunta: quantos anos tem? Digo tanto. Come bem, dorme bem, tá andando bem, etc.? Eu: tudo bem, o etc. mais ou menos. O médico: tá tomando aquela pilulinha azul? – Tô. Levantando-se: você vai longe – batendo em meus ombros, não se esquenta não, essa história de uma dor, aqui e ali, coisas de velho. Não é que ele tem razão?! A propósito, ocorre-me o que contava meu primo Luizinho, não sei se fato, se piada, esse primo era gozado, ria-se pra burro, ria muito mais que ele, recontava e ria, minha tia balançando a cabeça: esse aí é meio “baúco”, louco, em vêneto: solta o rojão e vai buscar a vareta... Estava-se na fazenda, à noite, todos reunidos à salona, televisão nem tinha, rádio só se ligava quando tinha jogo, lia-se. Meu tio assinava uns três jornais, estava lendo A Gazeta, um Seleções Orlando, outro primo, lia O Município de Amparo. Interessou-lhe um anúncio, à venda um fordinho 28, em excelente preço. Disse a todos: vamos vê-lo amanhã, vou comprar, vendo minha égua e volto de carro. De manhã, foram, ele, Luizinho e Cyro. Bateram: pá... pá... pá... – não tinha campainha. Veio o dono, sem camisa, de chinelo: querem ver o fordinho? Por aqui, tá lá, - viram-no ao fundo do quintal, meio arruinadinho, lógico, por aquele preço... O fordinho estava meio torto, uma roda em cima de um monte de entulhos. Orlando achegou-se, abriu capô, virando ao dono confuso: e o motor?! O homem balançando a cabeça: por esse preço acha que tinha motor?!
Encerro com o médico: meu caro, com 76 anos, um enfarto no lombo, um AVZ, que você quisesse?!...
Coisas de velho, é verdade. Ao primeiro do instante, ao primeiro berro olhando a luz, começa-se a aprender ser velho: nascer é um passo à velhice. Custei a saber que estava velho, de repente, fichas caíram, uma a uma. Hoje gosto de ser velho, mas é meio chato. Apesar de ser ranzinza, birrento, teimoso, apesar das amarguras da velhice, vive-se uma experiência única de se aproximar a Deus, cada vez mais. É bom derreter-se como um doce e se desfaz em ternura. Isso e tudo, coisas de velho.

Diná




Diná
MANHÃ sangrenta em siquém

a.j.chiavegato

Por vezes, ouso-me em profecia e poesia, livre de espaço e tempo, a encontrar fatos e verdades. Assim narro o que Deus me envia.
Era uma vez uma jovem, linda, quando a conheci, encontrei-a afundada em tristeza, inconsolável. Sua família morava com tendas feitas por tecidos grossos do Egito, chão forrado de juncos vindos das beiras alagadiças do rio Nilo, a costume dos israelitas, quer por trabalho de pastores, quer por vira e meche expulsados de sua terra a cantar lamentos do va pensiero! oh, minha pátria tão bela e perdida!
Estávamos em remotas épocas do Gênesis, manhãs da vida humana, o Éden, a burrada de Adão e Eva, o pecado, o primeiro exílio da terra da felicidade, o castigo da morte, o sangue de Abel sujando mãos e noites de Caim, ódio, roubo, violência de toda espécie, ensandecendo a paciência de Deus, abrindo céus em dilúvios e em fogo, Babel, línguas que não mais servem a se entenderem os homens, explicações, amor e perdão, inúteis que desaparecem no silêncio das palavras que não mais falam. Deus tentasse alianças a reerguer o homem à paz, pombas a anunciarem a esperança, arco-íris iluminando céus anunciando manhãs diferentes. Quebram-se arco-íris e inúteis pombas da esperança, mas hoje estamos em terras de Abraão, mais uma aliança, Deus coração aberto a receber bons propósitos do homem. Apesar da paz, vamos encontrar Jacó, fugindo de Esaú, exilado com seus filhos, um monte, entre eles, Diná, em terras de Canaã, em Siquém onde vivem os cananeus, idólatras, gente da pá virada que não te conto. Diná, a requebrar suavemente, fossem ondulações ao vento, a passear sua beleza ou buscar água em fonte, sobre cabeça talha de barro. Uma tarde, depois de banho, untada de aloés, que cheiro! foi por aí a conhecer as moças da cidade, embora nunca sem companhia, conhecida terra de usos e costumes os piores. Ao passar em frente de uma taberna, conhecida Ao Bigode, de propriedade de um caldeu, deparou-se com Siquém, filho de Hemor, príncipe da terra, que a saudou olá! esticando lânguidos olhos, um tanto puxados: que tal tomarmos um licorzinho de tâmaras em minha casa? Em tenras inocências e ingenuidades, disse-lhe: por que não? Nem bem chegaram a pegar nenhum licor, o cara a gudunhou, esperneando-se, me solta seu bruto, choro de raiva, uma aguda dor e pronto: era uma vez uma donzela. O bode que deu nem lhes conto! O garoto foi contar ao seu pai: fiz mal a moça, Diná! Quero me casar com ela. Pai ficou roxo, gaguejou nomes feios , coçou a careca, passou a mão num cacete e voou sobre o filho, esquivou-se, uma mesinha aguentou a porrada que se enlascou, fugiu.
Entrementes, uma velha foi dar a língua às gengivas, malignidade de comadre corre contar a Jacó: vós que sempre sonhastes com uma filha casada, de véu branco,- antes que Jacó xingasse o mundo, arrematou: a fruta bichou! Qualquer pai ficaria desesperado, é ou não é? no entanto, Jacó se calou fechando-se em tristezas, lembrado-se valendo vidas de paciência a conquistar Raquel , serrana bela que por ela trabalhou sete anos, mais sete anos, todo o tempo do mundo que para tão longo amor tão curta a vida. Levantou-se que pai sempre está de pé.
Seus filhos estavam no campo com o rebanho e nada souberam. Pai de Siquém, foi ter de Jacó exatamente quando chegavam, furibundos: isso é coisa que não se fazem contra Israel,comendo filha de nosso pai Jacó! Dizia outro: se pego esse sem-vergonho, pelo sol que me alumeia, furo os olhos dele! Outro: capo ele, pego uma pedra e esmigalho os ovos dele! Raios voavam no meio da tarde. Hemor, encolhidinho a aplacar fúrias: filhos, amigo Jacó, meu filho quer casar com sua filha, tá apaixonado dela?! Responderam: nunca!!! E dá-lhe filho disso, daquilo, vai pro inferno, que não cuidou em amarrar seu bode! Hemor argumentando em humildades: sei que meu filho errou, mas tem atenuantes, porque está apaixonado!!! Rubem, o primogênito de Jacó meio entendido em leis: de jeito nenhum!!! nem de nossas sagradas leis, nem no direito dos heveus - concluiu citando em latim: nem in utroque jure!!! Hemor replicando e contrapondo: amigo Jacó, a gente se entende, lembra-se que vendi-lhe o terreno onde vocês hoje moram, não foi bom negócio? Aparteou Rubem: caro, muito caro, colega! Sem respondendo, Hemor: vem aqui, Jacó – pegando-lhe pelo braço, você tem doze filhos, pegam nossas mulheres, escolhem, se alguém pega uma miúda, leva duas, vamos unir nossas famílias, terras, rebanhos, tudo e construir um novo povo. Cá entre nós, esta intenção era boa, rica de ecumenismos, de arrependimentos e propósitos. Todos olharam para Jacó, que a boa educação ensina que em difíceis horas cumpre ao pai a falar. Cabeça baixa Jacó pensava. Fecundos silêncios. Siquém perorasse, coração de bondades e mãos abertas, acho que estava comovido: quero ser filho de Jacó, cunhado de vocês. Amo Diná! Jacó baixou guardas e definiu: tudo bem, aceito a uma condição que todos os seus homens sejam circuncidados que minha filha tem que ser mulher de um circuncidado. Hemor pergunta: que é isso? Judá , filho de Jacó, explicou direitinho em detalhes, indicando o baixo ventre fazendo um gesto: corta aqui. Todos pularam: capar, nada feito?!!! Todos rindo esclarecendo os costumes dos israelitas. Ah, bom, é que quando alguém corta a pele que tem fimose, dizem que é dói pra burro. Falou-se que não doía tanto, por uns dias ficava em cama, logo desincha, pronto para uso. Ao que a uma voz concordaram: tudo bem, nossos deuses e vosso Deus são grandes!
Hora de convocação: um arauto acompanhado de uma corneta, dois negos batendo bumbos de coro de gato conclamassem: todo mundo só os homens mais de dezoitos anos assembleia nas portas da cidade. Chegaram logo todos os homens, que mais ou menos sabiam do que se tratava.
Aberta a assembleia, foi o assunto muito bem detalhado, pois versava de coisa delicada. Choveram perguntas que no fundo, resumiram-se em duas. a saber: primeiro: dói? Segundo: depois posso transar? Devidamente esclarecidas, um velho aditou um em tempo: velho também vai entrar na faca, mesmo com os inúteis, quer dizer – baixando a voz, que o coiso não funciona mais? Disseram todos, sem exceção. Um velhinho tremendo insistiu: vai inchá? De novo tranquilizaram: na primeira semana, incha, fica grande que nem uma linguiçona, ó , mais de dois palmos – explicando à ajuda de adequado gesto, ao que o velho não cabia em felicidade: – nossa, tudo isso?! – acendendo-se o fogo morto – já faz tempo que aquilo não sobe!
Deu-se o primeiro e único item da assembleia, o presidente estabeleceu: todo mundo em fila. Correria. Devagar, devagar, não empurrem? Idosos tem prioridade, vem aqui, o senhor, por favor. Um velho chegou. Suspende a túnica. Suspendeu apresentando os documentos murchos. De joelhos, aqui, isso, põe o pingulim em cima desse toco – um auxiliar o ajudou, segurou o pintinho, higienilizou-o, esticou um palmo de pele, vupt!!! desceu a espada. O velho: aaauuuuuuuu, porca miseria!!! – curvado, retorcendo-se segurando o carequinha ensanguentado. Um a um, todos se apresentaram, uns mais, outros menos maldizendo as mães de todo o mundo e acabou. A noite caíra quando o último se entrou em casa e cair em cama. Que noite!
Mal nascera a manhã, silenciadas as lamentações da noite, fumacinhas brancas subiam a cheiro de café sobre as casas, de sombras da noite vieram Simeão e Levi, tomaram espadas, entraram na cidade e mataram Hemor e Siquém, todos os homens e levaram sua irmã, Diná e foram embora. Os filhos de Jacó caíram impetuosamente sobre os mortos e assolaram a cidade, tomaram ovelhas, bois, jumentos e tudo o que tinha nos campos (Gênesis 34, 27-29) crianças e mulheres, velhas, as viúvas em bom estado e as virgens.
Descabelou-se Jacó: que vocês fizeram, hein?! Simeão e Levi, é coisa que se faz?! Os povos desta terra vão cair em cima de nós e acabar a gente, temos que correr, vamos embora!
Mais uma vez, Deus dá um jeito, chamando Jacó: sobe a Betel, onde construirás um altar ao seu Deus e hoje seu nome é mais Jacó, mas ISRAEL, mas esta história é outra, quem sabe um dia volto a ela.
Aqui se termina a tragédia de Siquém, mas nada, nada vai aplacar e compensar a tristeza de Diná.
F I M

Gostaram? Será? Sei lá, esperam aí. Claro, certamente esta crônica é razoavelmente bem escrita, recontando em outras palavras uma história narrada no livro de Gênesis. Narrei com imaginação e humor. Mas é pouco, uma notícia digna do Brasil Urgente do José Luiz Datena a alimentar nossa doentia vocação de vampiros, Eros em clímax de orgasmos, outra face do Thanatos, ou melhor, Eros e Thanatos se entre devoram. Do que escrevi, de tudo salva-se a triste beleza de Diná e uma frase que escrevi no contexto de estupro, de vinganças, de traições, de sangue e de morte: Deus sempre dá um jeito! E mais digo, nunca uma história termina, sempre se esperando que amanhã vem outra. Deus tarda, nunca falha. Com certeza, suscita, José.





Viagem aos seios de duília






Viagem aos seios de duília”
a.j.chiavegato

não me lembro se era bom o filme, creio que sim, pois me levou ao conto de Aníbal Machado, entre os cem melhores do século XX. Quem não retoma uma viagem de volta em tempos que passaram a rever um Pouso triste onde se nasceu, viveu e amou? O primeiro amor acontece em coração de orvalhos, espantadas crianças, deslumbrantes, sem fazer o que aquilo do céu lhes caiu. Em geral não se casa com o primeiro amor, mas se esquece nunca, sonho que não vingou por falta de chão, planta que se secou mas deixando gosto de orvalho e cheiro de relva cortada. Passa tempo, passam amores, fica lá aquele rosto que nos prometia pequena e incomensurável felicidade. Escrevo do que vivi amor de crianças sem palavras, coração em olhos, pouco, mais nada e tudo. Um dia pedi à empregada de minha tia mandar lembranças à garota, lá pelos nove anos, aos usos daquele tempo para ficar. Respondeu-me: se eu quero bucho, vou comprar no açougue. Ah meu Deus, primeiro amor tão cedo desiludido! Tempo passa, vida de sonhos junta os cacos e faz parábola que ensina, meu-primeiro amor-de-minha vida falando em profecias: toda beleza um dia vira bucho. Hoje, à feira, estava a comprar pastel para minha neta. Uma mulher olhou-me, não a reconheci. Conheço você – dizendo meu nome. Reconheci minha antiga aluna que não mais vira há quarenta nos. Alta, olhos entre verdes e azuis conforme encobre-se o sol, o resto, o corpo, linda. Era. Ah, meu Deus, o tempo ou meus olhos que deformem, como espelhos mágicos?! Apresso-me a dizer que não era a Duília do conto e de minha infância, mas vivi o mesmo desencanto. Sempre que encontro a beleza de uma mulher plissada em rugas, para além do verniz esmaecido é hora de se encontrar a mulher que não passa, a mesma, a que se foi. Para além dos olhos que se apagam, bate um coração terno, sempre novo. Leiam aquele conto, vale a pena. Amores e vida que se foram, olhos e seios, apagados e murchos, já batem começos de inverno que já é hora de se colher tudo, como as uvas, sempre as mais doces.

Ressurreição





Ressurreição
a.j.chiavegato
Da fria e da dura pedra,
desentranha-se a serena ternura
dos que morrem na esperança
que nasce à sombra da cruz e do sangue.
Nosso Deus que morre transfigura
a morte de todo homem que vem ao mundo,
mãos chagadas estendidas
ao abraço do ressurgido.

Feliz Páscoa! 2012





Kiss


de carnaval a quarta-feira de cinzas


a.j.chiavegato


Vira e mexe morrem jovens por acidente ou por assassinato. Estatística. Desgraças entram em casas às noites diante da televisão. Sincera e ineficaz revolta: meu Deus esse país tá uma coisa! Assistimos novela, damos uma espiadinha básica no BBB e dormimos com chuva ou não, com sonhos ou não e outro dia amanhece no o mundo sobre justos e injustos. Jovem que morre é sempre uma tragédia que engolimos em doses homeopáticas envenenando-nos lentamente se não encontrarmos os devidos antibióticos. Agora, quando jovens morrem aos montes é fogo! Sei que o trocadilho é de extremo mau gosto, pior o que a vida nos apronta sem clemência e sem graça. Kiss, nosso carnaval acabou. Lágrimas se desdobraram em revolta: quem é o culpado? Faixas silenciosas exigindo justiça. Vamos nos entender, de cara, entre os muitos suspeitos, vamos tirar Deus daí que explico. Claro, sei que uns dizem que foi ele, acham que nem existe. Outros nele se refugiam, pobre tabua a se agarrar quando o mundo se afunda em tristezas. Apesar de tudo, vivemos. Sobre toda tragédia, outro dia amanhece, o sol ilumina tudo, enxuga lágrimas, desfaz neblinas, espanta sombras da noite, novas sombras das árvores a acolher os que trabalham a inventar o dia e a vida, a nossa responsabilidade, tarefa de viver.
No fundo do desespero não é fácil aplacar o anseio por justiça. Poderemos encontrar pessoas e instituições a serem exemplarmente punidas, erigiremos memorial coberto de flores onde jovens morreram e seguramente perceberemos que nunca e nada saciará exigências de justiça, nunca abolida a nossa tristeza.
Vida humana esbarra em muros, duros, intransponíveis, duro o mistério de Deus. Negá-lo e daí ?! Viver não é afirmar a existência de Deus, mas encontrar o sentido de nossa liberdade. Independente de nossa vontade, Deus existe, queiramos ou não, criou-nos livres. Para além desse mistério Deus está ai, permeando tudo, nossa infidelidade, nossas tristezas e nosso desespero. No entanto, acho que viver vale a pena apesar da morte.
Kiss, sei que alguns jovens morreram a salvar outros descobrindo para si e para nós que vale a pena morrer por amor. Quando desabam vidas, quando se instalam desesperos, Deus está ai, misteriosamente inventando janelas a abrir à luz, ao dia, quando a casa se desmoronou .
Termino. Por vezes a vida bagunça um monte de coisas a confundir cabeças e expressão: morte, Deus, desespero, culpa, revolta, vítimas, jovens que morrem ao lado de jovens que vivem, cantam, dançam e amam, especialmente crianças que brincam sonhando o futuro, que era uma vez a felicidade de jovens que morreram e dos que inventaram um caminho da alegria a morrer por amor. A nós, entre tanta confusão discernir razões para amar e viver. A vida não é mole, não é coisa a se levar à flor da pele. Só em fundos emerge a esperança e a alegria. 

Uma linda mulher


UMA LINDA MULHER

A.J. CHIAVEGATO



Enuncio a tese, sem premissas e com conclusão que não se trata de matéria de razão, embora de verdade vital: a cada idade do homem corresponde uma beleza. quem vive ao longo das intempéries da velhice , como eu, encontra uma beleza que se irradia o corpo inteiro, luz que vem de dentro a transcender o que é velho e feio. Por exemplo, meu amigo Mário Faria, poucos anos mais velho que eu, coitado, não adianta disfarçar os estragos do tempo, apesar deles é de se achá-lo belo, não apenas constatado pela Wanda, sua mulher, o que é muito. Careca não é, digamos, de escassos cabelos que os primitivos o vento os levou a não mais poder arrumado o topete, por Glostora ou Gumex, à Clark Gable.sem bigodinho que nunca teve. Graças a Deus ele ostenta hoje um jeito novo de ser belo, mesmo que todo o mundo o achar que era... Pelo amor de Apolo, não cai no ridículo, digo a homens e mulheres, não saem por a comprar uma peruca, caríssima e importada, não adianta, azul, vermelha, roxa, preta, loira, sei outra cor, em reflexos de sol que cai. Não fogem do esforço de achar que a cada idade corresponde um tipo de beleza. De coração digo às minhas amigas sexagenárias e acima, não transformem o rosto e o corpo que são lindos e sexis. Como uvas, são as mais doces, depois de verão que passou em começos do inverno, colheita tardia, como dizem os alemães Spätlese. Podam peles, um pouco aqui e ali, tudo bem, realçando uma beleza nova que se desabrocha a cada manhã. Não queiram à custa de bisturis e de quilos de botox (cf. dona Marisa) disfarçar o tempo que passa, como fogo, ninguém esconde. Fogo e luz não envelhecessem, amigas, deixam que seus olhos irradiam e iluminam seu corpo e sua vida. Volto-me ao meu amigo que aniversariou mas não conto quanto anos, mais ou menos setenta e nove, nossa! Sei e testemunho: feliz, tocando sua vida com jovem rosto de velho a contar e cantar histórias de vida. De tese concluo em intuições vividas: felizes os velhos que guardam em coração e em olhos, a esperança, tão como e amor, linda, sempre jovem!

Meu amigo Augusti




MEU AMIGO AUGUSTI
a.j.chiavegato


Primeiro ato.
Cortina. 1917. Ouve-se o tema de Lara ao som da balalaica.
Lara era linda, cabelos cor de sol dançando ao vento, bronzeada, olhos azuis, destinada ao amor por Yuri, tipo Omar Sharif. Por caminhos tortos, casou-se com Tônia, bonitinha, graciosa, filha do Chaplin. Lara casou-se com um romântico revolucionário pro sovietes, cara de palerma, quem sabe, vocação escondida de Superman, chamava-se Pasha. O clima estava tenso entre brancos e vermelhos. Olha ele lá passando panfletos vermelhos. De repente, a cavalaria da PM irrompe empunhando refles em cima da multidão dos manifestantes. Correria, mulheres carregando crianças, velhos caindo, cavalos pulando, um raio de espada desceu na cara de Pasha, corte fundo, óculos caindo, o sangue, a neve.
A revolução. Pasha sumiu. Lara virou enfermeira na fronte das batalhas. E dá lhe bombas pro todos os lados, negos voando arrebentados, braços cortados, pernas virando tocos, alguém berrou levando um tiro no olho e ela acudindo em meio dos gritos. Uma mancha vermelha se alastrava na Rússia, em sangue e na dominação dos bolcheviques .
Um trem bala atravessando a Rússia, esbaforindo fumaças e apitos de uma enorme locomotiva, duas bandeiras vermelhas na frente, dirigindo o general Pasha Strelnikov, na cara uma funda cicatriz, indelével, marcas da injustiça.
Cortina. Sumindo-se o tema do amor de Lara, ouçam-se os silvos da violência.
Segundo ato
Cortina. Década 50. Sem música, não dá tempo.
Era uma vez um cara que chegou à minha vida, Augusti, em 1956. Tímido, quieto, ar doentio. Não me lembro se era bom de esporte, talvez não, forte em estudos de filosofia? Acho que sim, recolhido em humildades. Não era triste, de jeito nenhum, ria discretamente, de longe olhava, nada vendo e tudo compreendendo. Por ele convivi um ano e meio. Fui a Roma sem saudades, carregado de expectativas.
Cortina.
Terceiro ato.

Cortina. Décadas 60-70. Ouve-se “Pra não dizer que não falei das flores.”

Em 1963, voltei de Roma nomeado professor de filosofia em Aparecida, logo me caí em meio aos estudantes, Daniel na toca dos leões, perdi rumo, minhas experiências políticas da Europa atontaram-se, nem comecei a falar, olho me disseram que eu era reaça. A bíblia deles virou o Brasil Urgente, jornal de um frade Josafá, fazer o que, tentei dançar como a música, quer dizer, ao som do Internacional socialista: De pé, ó vítimas da fome... etc. Começos de 64 estourou o bode que já o previa. Em princípio, o golpe foi tênue com Castelo em perspectivas de logo se retomaria o estado de direito. Em 1965 voltei a São Paulo, no seminário central e na PUC. A coisa tava feia, Jecistas me convidavam: padre, vamo quebrar o pau no Largo São Francisco. Uma tarde, dando aula no Sedes Sapientiae ouvia-se troca de tiros entre filosofia-usp e Mackenzie. O Sedes era liderado pela madre Cristina, diabo de hábito, comunistona, como Dom Helder e tantos. Eu, aspirante, noviço de comunismo. Conheci muitos líderes dos estudantes subversivos e alguns meus alunos, sumiram. Por 68 eu estava no meio do fogo na PUC. Medo, tinha. Falava aberto em aulas contra a ditadura dos militares, de 70 a 76 escrevendo em A Tribuna Ilustrada de Campinas. Em minhas aulas, conheci um aluno que era do Dops, conversava comigo, interessado na matéria, eu mandava ver. Seguramente estava fichado no Dops. Dava aula de filosofia sobre humanismos, entre os quais, o marxista, porque não? Nunca fui comunista. Meu chefe de departamento de filosofia, Franco Montoro, disse-me que era melhor mudar o tema para humanismo dialético ateu. Não me impôs, temendo que eu dissesse dele como reaça. Acho que não era, mas já tinha vocação a viver em cima do muro, em futuro, esteve entre fundadores do partido dos tucanos. A esse tempo, pouco conhecíamos de presos políticos, padres e estudantes conhecidos, dificilmente notícias eram divulgadas. Em resumo, ao longo dos 70, passei livre de perseguições, pé-de-ouvidos, pé da bunda, nada. Casei-me em 1975 aí começou-me a tortura. Brincadeira, vivi em dias de méis, mas não muito durou que lhes conto. Foz de Iguaçu, logo após visita das cataratas, peguei meu carro e saí. Um cara vestido de polícia florestal, pediu carona, não dei. Minha mulher: Fofo, dá carona pra esse coitado. Dei ré, o cara entrou atrás, mais dois subiram. Logo senti a burrada que fiz! Voei. Numa curva o guarda pediu: descemos aqui. Parei. Um monte de 38 na nossa cabeça. Levados ao mato e amarrados em árvore, o chefe dizendo: temos que acertar umas contas com você. Respondi: ô meu, que eu fiz?! Ele ainda me amarrando: logo lhe direi que você vai entender. Gelei-me, pensei: é isso, sou professor da PUC. Poucos dias, noticiava-se o assassinato do padre Henrique em Recife, professor como eu. Tô frito! Quando nos tiraram documentos, relógios, dinheiro, sosseguei-me. Estava certo que era só assalto. Voltamos a São Paulo, sem carro, dinheiro e de luas de méis. Minha mulher acho que até hoje tem marcas do que vivemos, eu me virei, disso e de todos os sinais de torturas que não estive, que os guardo no lombo e no coração de todos amigos, ou não, que sofreram pela justiça. E o Augusti? Nunca mais o vi.

Cortina.

Quarto ato.

Cortina. Tempo atual. Um trem voando, apitando em fumaças, por longas estepes sem que vejam horizontes.

Na frente, o maquinista, José Eduardo Augusti, rosto sem cicatrizes, coração vazio de ódio e de vingança. Livre, não de um indulto ou de uma anistia anacrônica, quem sabe que hoje aplaudem os que ontem apoiavam suas torturas. Fui ao encerramento do processo inocentando-o dele post mortem. Ao longo do processo e da comemoração, encontrei-me em meio de uma missa, mais sagrada que nunca vivi, de fraternidade, de justiça, de amor. Não se comemorava paixão, torturas e morte do Augusti. Sua morte traz em si o selo da anistia. Amo os que entregaram suas vidas, mesmo no medo, no pavor, em funda noite do jardim das oliveiras. Amo mesmo os que entregaram tudo e suas vidas por causa da vingança. Vire-se meu amigo misericordioso Deus a julgar os que mataram por causa de uma paixão enlouquecida de justiça.

Cortina. Ouve-se o tema do amor de Lara, baixando, rallentando, explodindo-se no Aleluia de Händel. Na cortina branca projeta-se a Gloria de Bernini. Dissolve-se o Espírito Santo, surgindo lentamente o rosto do Augusti, translúcido.